JESUS NÃO É UMA MARCA
A evangelização na era do consumo tem muito do discurso do marketing – mas a Igreja não pode oferecer o Evangelho como bem de consumo
A marca Jesus é uma das mais conhecidas e
rentáveis do mundo. O nome do Filho de Deus acompanha a humanidade há dois
milênios, resistiu a toda sorte de crises – da opressão romana no início da Era
Cristã ao comunismo, das trevas da Idade Média ao ateísmo filosófico do século
19 – e é a razão da fé de pelo menos 2 bilhões de pessoas. Seus ensinos e as frases
que disse em seu ministério terreno – como o genial “Dai a César o que é de
César” ou o inquietante “Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra” –
fazem parte dos mais diversos casos de marketing.
Mas são justamente as estratégias empregadas na propagação
do Evangelho que têm causado mais controvérsia. Esta é a questão que se levanta
quando pesamos os métodos de evangelismo público por parte de igrejas marcadas
pela cultura ocidental, saturadas pelo marketing.
Ora, qualquer secundarista sabe que marketing pode ser
definido como todas as atividades que ajudam empreendedores a identificar e
moldar o desejo de seu alvo, os consumidores – e, então, satisfaze-los mais do
que seus competidores o fazem. Isso geralmente envolve pesquisas de mercado,
análise das necessidades do cliente, e, então, decisões estratégicas sobre
design de produtos, preços, promoções, propaganda e distribuição.
A Igreja enfrentou – e enfrenta – questões inevitáveis
por escolher manter o evangelismo pessoal e testemunho público em uma sociedade
marcada por uma cultura consumista. A primeira questão é: Será que devemos
transformar em artigo de mercado a Igreja e a mensagem de Cristo? Podemos usar
técnicas de marketing no cumprimento do “Ide” de Jesus?
Temos condições de mudar o meio sem afetar a mensagem? Ou
será que o próprio meio do marketing mancha nossa pregação, fazendo-nos
resistir até o último suspiro a toda acomodação à nossa cultura de consumo?
Parece evidente que, a menos que nos abstenhamos de toda
forma de evangelismo, o marketing é inevitável. Se ele é a linguagem da nossa
cultura, os cristãos devem ter fluência nele, da mesma forma que os
missionários transculturais precisam dominar o idioma dos povos aonde vão
atuar.
O marketing é apenas a última encarnação dos clássicos
modelos evangelísticos, como a persuasão e o exemplo de vida. Por esta
perspectiva, o erro estaria em fazer um marketing da Igreja de forma pobre, o
que a faria parecer menos do que ela é – como uma marca indesejável – para um
público de não cristãos. Deve-se ter em mente, também, que o marketing tem um
problema: às vezes, ele leva as pessoas a fazer exatamente o oposto do
desejado.
Conflitos com
a vida cristã – Em outros termos, as pessoas que respondem ao marketing
eclesiástico encaram Jesus como uma mercadoria. Este é o primeiro e grande
problema, pois isso é blasfêmia: nós estamos falando sobre o Logos encarnado, e
não sobre uma logo. Por outro lado (caso blasfêmia não seja o
suficiente…), isso deveria nos preocupar pelo problema que traz para o
discipulado. O consumismo não é apenas um fenômeno social – é espiritual. Ele
vem dos hábitos e comportamentos espirituais que conflitam com as práticas
particulares da vida cristã.
Existem vários conflitos desta natureza, mas quatro se
destacam como mais arriscados:
1. “Você é o
que você compra” versus senhorio de Cristo – Em uma
sociedade consumista, a identidade das pessoas vem do elas consomem. O
principal foco de uma sociedade consumista é o consumidor – o que é essencial.
Marcas comerciais não fazem nada para abalar essa auto-suficiência fundamental;
na verdade, elas dependem disso. A dinâmica é simples – nós pagamos pelo
privilégio de algumas marcas porque gostamos do que elas fazem por nós. Em
contrapartida, as marcas estão bastante satisfeitas em receber nosso dinheiro.
Consumidores espirituais, portanto, haverão de se aproximar da Igreja com o
mesmo narcisismo com o qual se aproximam das demais marcas, com questionamentos
como: “O que estou expressando a meu respeito, caso eu compre a marca Jesus?”;
ou “Como o cristianismo completará a visão que eu tenho de mim mesmo?”.
A implicação teológica disso é: eu pertenço a mim mesmo.
Sou meu próprio projeto, meu próprio produto. Essa é uma terrível rejeição à
glória que deve ser dada a Deus como Criador. O perigo está no fato de que a
Igreja passa, com isso, a transformar rapidamente o Evangelho em mera
ferramenta de preenchimento pessoal. Pregações e evangelismo que enfatizam
apenas os benefícios de se tornar um crente apresentam uma mensagem não muito
diferente das propagandas que falam sobre as vantagens de determinados modelos
de carros, por exemplo. Essa atitude prejudica o crescimento dos discípulos
rumo a uma vida centrada em Deus e no próximo. Sim, a vida cristã traz
plenitude para além da imaginação; mas ela vem apenas quando buscamos a Deus
mais do que a nós mesmos. Aqueles que vêm à igreja esperando satisfações de
mercado e procurando apenas salvar sua vida não encontrarão nem uma coisa nem
outra.
2.
Descontentamento versus a suficiência de Cristo – Embora o
consumismo prometa plenitude pessoal, os ciclos econômicos dependem
inteiramente de um descontentamento contínuo. No fundo, o consumismo não se
trata apenas de comprar um produto novo, mas sim, de adquirir esse produto para
que você se sinta novo. As pessoas que trabalham com o marketing sabem disso e
planejam seus produtos de tal forma que o consumidor sempre é levado a desejar
o novo que está por vir, o último modelo do que já tem.
Consumidores descontentes também carregam uma armadilha
espiritual semelhante. Inicialmente, nossa busca perpétua por conforto e
felicidade, na verdade, aniquila-se toda chance de satisfação de nossos
desejos.
O prazer de comprar um novo produto ou serviço, na
verdade, durará pouco tempo. Logo vai embora – e o pior é que imediatamente
depois, passamos a desejar algo novo. Em seguida – e esta é uma questão
perversa –, nós não conseguimos lidar com desconforto.
Como consumidores, buscamos novos produtos quando
percebemos os primeiros sinais de irritação. Como as clinicamente identificáveis
dependências de compras, esse é um espantoso indicador de uma cultura
decadente.
A maioria das pessoas, nos mais diversos lugares, não tem
o luxo de lutar por vidas livres do sofrimento e da dor. Evidentemente, termos
todas as nossas necessidades sempre supridas é precisamente o oposto do que o
discípulo deve experimentar. Paulo mostra uma indiferença quanto às
circunstâncias da própria vida, sentimento que era fruto de sua maturidade
espiritual: “Aprendi a viver contente em toda e qualquer situação.
Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de
tudo e em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como
de fome; assim de abundância como de escassez. Tudo posso naquele que me
fortalece” (Filipenses 4.11-13).
A questão levantada pelo apóstolo não é que veremos todas
as nossas necessidades prontamente assistidas, mas que, fazendo de Jesus o
Senhor de fato de nossas vidas, precisaremos cada vez de menos coisas para
termos satisfação completa. O discipulado, presente na comunidade cristã, tem
como objetivo satisfazer com uma só coisa: o senhorio de Cristo em sua vida.
3. O
relativismo das marcas versus o senhorio de Cristo – Um bom
profissional do marketing busca formar um tipo de pessoa que se identifica
tanto com sua marca que passa a considerar algo inimaginável a possibilidade de
viver sem ela. Em se tratando de valores, esse tipo de entusiasmo parece
indicar uma superioridade das marcas na vida de alguém.
Entretanto, subjacente a esse fanatismo pelas marcas,
está o relativismo inerente no consumismo. Uma marca de celular não é
inerentemente melhor do que a concorrente, embora produtos do gênero precisem
ter certa dose de competição técnica. Uma delas pode até fazer um melhor
trabalho de capturar as mentes e os corações; todavia, dizer que determinado
logo é melhor do que outro é tão ridículo quanto afirmar que os moradores do
Rio de Janeiro são melhores do que os moradores de São Paulo.
Melhores por quais padrões? Para ser honesto, as marcas
comunicam coisas diferentes umas das outras. No mercado americano de
automóveis, Mercedes representa luxo, enquanto Honda expressa confiança.
Ambas, porém, fazem o que devem fazer em termos de qualidade.
Portanto, a superioridade de uma sobre a outra está única
e exclusivamente na cabeça do consumidor.
O consumidor que compra nosso marketing fará de Jesus sua
marca escolhida, e o zelo resultante dessa escolha parecerá fé apaixonada.
Aparências nos desapontam. Uma fé genuinamente apaixonada está enraizada em quem Cristo de fato é.
Um zelo pela marca, por sua vez, está centrado na própria pessoa, pois a
superioridade de uma marca sobre a outra depende tão somente do entusiasmo do
seu devoto.
O zelo existente mascara a arbitrariedade da escolha.
Entretanto, a escolha por Cristo não é arbitrária. Se um consumidor descontente
com uma marca de TV escolhe outra, a primeira perde e a segunda ganha. Mas se
uma pessoa deixa de escolher a Cristo para servir a outros deuses – ou a deus
algum –, Cristo não é nem um pouco diminuído.
Consumidores espirituais não têm porque achar que o cristianismo não é uma opção entre muitas. Entretanto, a santidade na vida de uma igreja é um grande testemunho do contrário.
Consumidores espirituais não têm porque achar que o cristianismo não é uma opção entre muitas. Entretanto, a santidade na vida de uma igreja é um grande testemunho do contrário.
A igreja revela a supremacia de Cristo em um mundo que
nega seu poder quando ama o que não é amado, perdoa o imperdoável, promove
reconciliações aparentemente impossíveis e faz a perseverança triunfar sobre as
dificuldades.
4.
Fragmentação versus unidade de Cristo – A chave para o sucesso no marketing é a
segmentação: dividir determinada população em grupos identificáveis por suas
preferências relacionadas ao consumo. Trata-se de uma análise demográfica. Um
profissional do marketing pode olhar para as contas mensais de uma pessoa, ou
apenas para o CEP de seu endereço e descobrir coisas importantes para acerca de
seu perfil de consumo.
As segmentações nos chamados nichos de mercado permitem
aos marqueteiros concentrar suas mensagens em públicos mais restritos,
tornando-as mais eficazes. Isso tem permitido que o ser humano do século 21 com
capacidade de consumo possa viver praticamente alocado dentro de suas
preferências.
Vivemos em bairros residenciais com pessoas que se
parecem conosco, vamos a igrejas cujos membros têm perfil social semelhante ao
nosso, passeamos com companheiros que têm os mesmos gostos que nós. Tudo isso
contribui para relutarmos contra a vida em contextos nos quais as pessoas não
são como nós.
Isso, é claro, é um problema para a Igreja. A unidade
cristã é um valor bíblico inegociável. Pense na oração de Jesus em João 17, na
exortação de Paulo aos filipenses para que fossem um com a mente de Cristo, ou
na metáfora da Igreja como o corpo de Cristo, com diferentes membros igualmente
importantes em suas funções.
Como Paulo afirmou em Gálatas 3.28, a unidade de Cristo
rompeu todas as principais diferenças da sociedade romana: de tribo, classe e
gênero. Com efeito, nenhuma identidade importa tanto quanto a identidade
cristã.
Precisamos, portanto, estar atentos para as infiltrações
da segmentação do marketing nas nossas igrejas. Isso tem provocado duas
inaceitáveis consequências: igrejas extremamente homogêneas representando
tendências consumistas e, na outra ponta, pequenos grupos homogêneos dentro de
grandes igrejas.
Ambas as tendências tendem a nos separar dos que nos
parecem “diferentes” e a nos levar uma comunhão restrita por padrões sociais,
culturais, etários ou até mesmo étnicos – ou seja, caímos no nicho
eclesiástico. Certamente foi a isso que Paulo referiu-se como “conformação com
este século”, citada em Romanos 12.2.
O consumismo veio para ficar. Hábitos como autocriação,
descontentamento, relativismo e fragmentação se tornarão mais dominantes nos
próximos anos. Essa é a forma que a economia global e as transações comerciais
julgam ser interessante.
Não podemos derrotar nossa realidade; podemos, sim, viver
de forma fiel em meio a esse contexto. Para isso, é fundamental nos lembrarmos
da natureza da Igreja de Cristo. Em todas as épocas, cristãos têm lutado para
defini-la; é uma tarefa difícil porque é a única instituição divina e humana ao
mesmo tempo.
A Igreja é como uma família, um reino, uma organização
social, uma reduto de vida, de companheirismo e – para os nossos dias – um
mercado. O problema se instaura quando procuramos definir a Igreja como um todo
a partir de apenas um de seus aspectos. Ou seja, tratando-a como um mercado que
tem uma marca a ser vendida. Se tratarmos o Evangelho como um produto, não
estaremos levando aqueles que não crêem a pensar na cruz como apenas mais um
logo?
Nós também precisamos entender, porém, que, não importa o
que façamos, o consumismo inevitavelmente estará presente na forma pela qual as
pessoas veem a Igreja em nossa sociedade. Toda nossa comunicação da Palavra de
Deus será encarada como um marketing; toda exposição dos conteúdos do Evangelho
será tida como um produto.
E o evangelismo será visto como uma venda. Nada há que
possamos fazer para mudar esse contexto. Há ainda mais razões para desafiarmos
as expectativas. Consumidores espirituais virão às nossas igrejas como vão às
vitrines das lojas nos shoppings, procurando um produto que combine com suas
preferências.
Eles desejarão isso porque consumir é a única salvação
que eles conhecem. Trarão todos os seus recursos e terão grande dificuldade em
entender a graça de Deus, porque não conseguem conceber algo que não pode ser
comprado.
Eles virão à nossa vitrine buscando o que querem, da
mesma forma como fizeram aqueles que foram a Jesus, em seus dias, buscando
comprar seus produtos – os milagres que operava. Naquela época, eles estavam
procurando por um mestre, um homem louco, um profeta ou revolucionário, e – no
fim – por um cadáver. Hoje, eles estão buscando uma marca espiritual.
Nos dias de Jesus na Terra, quem o procurou encontrou um
Messias vivo e um Senhor. Eles encontraram o Deus pelo qual nem mesmo estavam procurando.
A pergunta que nos cabe, hoje, é se aqueles que o buscam hoje haverão de
achá-lo no que se chama de corpo de Cristo, chamado para transformar o mundo –
e se, procurando algo novo para comprar, serão surpreendidos por Deus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário